Resenha - O Direito Natural em Tomás de Aquino - John Finnis
Atualizado: 29 de ago.
Na obra Direito Natural em Tomás de Aquino: sua reinserção no contexto do juspositivismo analítico, o professor John Mitchell Finnis, de Oxford, procura apresentar de maneira clara, rápida e consistente a teoria da Lei Natural, conforme formulada por Tomás de Aquino no século XIII e renovada em nossos dias pelos integrantes da chamada Nova Escola da Lei Natural, da qual o próprio professor é integrante.
Esta teoria, também conhecida pelo nome resumido jusnaturalismo tomista, arquiteta uma complexa relação entre Ética, Direito e Política, partindo de características presentes na vida humana e de bens necessários à sua realização pessoal, o que normalmente se traduz como felicidade.
A obra resenhada foi publicada no Brasil em 2007, e é a reunião de dois ensaios escritos pelo professor Finnis para uma audiência particular. O primeiro ensaio, trata da teoria da Lei Natural de Tomás de Aquino, propriamente dita; o segundo, porém, trata de teorias do Direito Natural em geral.
Os dois ensaios permanecem distintos na obra e, por isso, pode-se afirmar que ela é dividida em duas partes que, embora se complementem, podem ser lidas separadamente. Cada ensaio é subdividido em tópicos facilmente identificados como capítulos, e estes subdivididos em tópicos menores.
Esta resenha procura apresentar somente a primeira parte, que demonstra o pensamento de Tomás de Aquino conforme a interpretação de John Finnis.

1. A estrutura do ensaio
A primeira parte do livro, intitulada A filosofia moral, política e jurídica de Tomás de Aquino, é dividida em 7 “capítulos”.
No primeiro capítulo, Finnis reflete questões introdutórias, como a interpretação e o método a ser utilizado na leitura e entendimento das obras do Aquinate, bem como na formulação de uma adequada teoria ético-jurídica.
Em seguida, no segundo, terceiro e quarto capítulos, demonstra como é possível encontrar normas éticas a partir de bens para os quais o ser humano se inclina naturalmente, em vista de sua cotidiana forma racional de agir.
No quinto capítulo, o professor reflete sobre a comunidade política e a finalidade de sua existência: o bem-comum, que está intimamente relacionado aos bens elencados nos capítulos anteriores da obra.
Por fim, no sexto e no sétimo capítulos, o Estado e a Lei são postos em análise a partir da teoria ética e política levantada.
2. Resumindo a obra
A seguir, um resumo das principais ideias contidas nessa primeira parte da obra. Sabe-se que a obra é como que um comentário de John Finnis ao pensamento de Tomás de Aquino; porém, para facilitar a narrativa e encadeamento dos conceitos, toma-se as ideias do texto como sendo de John Finnis, o que não é errado, visto que se pensamento se baseia no Aquinate.
2.1. Capítulo I: interpretações e método
Em primeiro lugar, Finnis pergunta se a noção de “função humana distintiva” é fundamental para Tomás de Aquino. Essa noção, amplamente aceita por pensadores de matriz aristotélica, funda as suas conclusões na premissa de que existe uma função ou atividade que é propriamente humana — a contemplação, própria da racionalidade — e que, por isso, deve ser exercida e entorno dela devem orbitar as teorias ética e política.
Na tradição tomista, muitos reputaram a Tomás de Aquino o assentimento com essa noção, isto porque é o que ele aparenta fazer em sua obra Comentário à Ética de Aristóteles. John Finnis, porém, destaca que a função humana distintiva não é uma ideia fundamental para o pensamento do Aquinate, e elenca 7 argumentos para isso, dentre os quais o principal é demonstrar que essa ideia não estaria absolutamente alinhada com a teoria geral apresentada na obra principal de Aquino, a Suma Teológica.
Em seguida, o professor demonstra que a ideia de “fim último do homem” também não é estritamente necessária para o entendimento geral e desenvolvimento do jusnaturalismo, isto porque o que Tomás de Aquino concebe como fim último do homem está no plano teológico, enquanto a sua teoria moral e política possui certa autonomia desde que ele reconhece que há um grau de conhecimento que a razão alcança em sua atividade própria.
A ideia central, portanto, não é inferir normas éticas a partir de descrições gerais da natureza humana ou de sua relação com o transcendente, e sim demonstrar que o ser humano chega a tais valores a partir da experiência que tem com a própria realidade das coisas e experimentando o que ele mesmo é e realiza.
2.2. Capítulo II: primeiros princípios da razão prática
Finnis demonstra que a inteligência humana possui uma extensão que lhe permite deliberar a respeito do que fazer: a razão prática. Essa atividade é o que permite ao homem escolher o que realizar quando está confrontado por múltiplas e igualmente válidas possibilidades atrativas para a ação.
Todos experimentam isso no dia a dia: quando se escolhe o caminho a ser percorrido até o trabalho, o cardápio a ser preparado para o almoço, ou mesmo a simples escolha entre uma garrafa d’água e um refrigerante, o que está diante do ser humano é a escolha entre bens que lhe são atrativos. Bem assume a característica de fim, isto é, finalidade para a ação.
Tudo o que é atrativo e leva à ação é identificado pela razão prática como bem, e tudo o que lhe for contrário é identificado como mal e é rejeitado. Atente que, nesse nível, o bem e o mal ainda não se referem à moral; são tão somente identificações simples que a inteligência humana realiza.
Nesse sentido, segundo Finnis, a razão prática é guiada por um primeiro princípio que lhe dá forma e direção: o bem é para ser feito e perseguido, e o mal é para ser evitado. Repita-se, isto ainda não está no plano moral, mas apenas no plano descritivo das ações humanas.
Finnis, junto de Aquino, enfatiza e insiste que os primeiros princípios não são inferidos pela inteligência humana a partir de silogismos, mas são encontrados por ela durante a sua própria experiência ao longo do tempo. A este processo, Finnis nomeia como insight.
Ocorre que, na experiência frequente com os bens atrativos ao ser humano, a inteligência encontra uma certa classe de bens que se demonstram como benéficos a todo e qualquer membro da espécie. Para Tomás de Aquino, estes bens são seis: vida, matrimônio, conhecimento, sociabilidade, religião e razoabilidade.
Transcreve-se a seguir um trecho onde Finnis exemplifica como o insight de um desses bens ocorre:
“... Como uma criança experimenta a inclinação de fazer perguntas e saúda respostas aparentemente satisfatórias com satisfação, e falhas ao responder com um desapontamento, em determinado ponto alguém vai entender – tem o insight – que tais respostas são instâncias de uma possibilidade geralmente disponível, denominada conhecimento, descoberta e superação da ignorância. Por um insight distinto superior, ainda que frequentemente quase simultâneo, alguém entende que este – conhecimento – não é meramente uma possibilidade, mas também um bem [bonum], ou seja, uma oportunidade, um benefício, algo desejável como um tipo de aperfeiçoamento (uma perfectio) de sua própria condição ou de qualquer um, e como algo a ser perseguido”.
FINNIS, 2007, p. 36.
Assim, o que Finnis nomeia como bens básicos, são aquela classe de benefícios que, pelo insight dos dados coletados pela experiência, são entendidos como formas superiores de bens desejados por todo e qualquer ser humano e que, por isso, valem a pena ser feitos, perseguidos, realizados.
É entorno dos bens básicos (seis, para Aquino) que gira toda a teoria ética da Lei Natural.
2.3. Capítulo III: princípios morais
Como base para um salto válido ao plano moral, Finnis discorre, a partir da obra de Tomás de Aquino, o princípio supremo da moralidade: amar ao próximo como a si mesmo.
Na tradição clássica, amar significa querer bem a alguém e, nesse caso, querer bens básicos a alguém. O coração da teoria moral do Aquinate, portanto, se trata do fato de que o amor leva alguém a buscar e realizar os bens na vida das pessoas amadas.
Para Finnis, esse princípio supremo é uma síntese “redescritiva” dos primeiros princípios alcançados pelo insight e é alcançado pelo mesmo processo dos bens básicos. Deste modo, à medida em que alarga seus laços sociais, uma pessoa que não possui distorções intelectuais graves pode entender que todo e qualquer ser humano é digno de ser amado; e, por isso, todo e qualquer ser humano é digno de bens básicos.
Em resumo, um ser humano entende que bens básicos são benefícios intrínsecos à sua felicidade; em seguida, ao amar, procura realizar tais bens para si e para aqueles que ama; enfim, alargando seus laços, e entendendo a dignidade de todo ser humano, respeita tais bens na vida de todos. E é assim, por exemplo, que se alcança a norma moral de não matar: matar fere o bem básico da vida, logo, não matar é um dever moral.
Ao término do capítulo, Finnis demonstra como isso interfere na concepção que alguém tem acerca do homicídio, do adultério e da mentira, que são ações absolutamente contrárias a três dos bens básicos.
2.4. Capítulo IV: virtudes
No quarto capítulo, John Finnis trata da relação da Ética das Virtudes com a Ética da Lei Natural.
Segundo ele, os primeiros princípios da Lei Natural, cuidadosamente discutidos nos capítulos anteriores, são mais necessários à ética do que o são as virtudes. Contudo, isso não significa que as virtudes são dispensáveis na teoria finnisiana/tomista.
Ocorre que, para o professor Finnis, as virtudes não são conclusões morais, do tipo “a virtude da religião indica que se deve dar a Deus o que lhe é de direito, por isso, devo ser religioso”. Na verdade, as virtudes são apenas fonte ou propulsores para a moralidade: uma pessoa que pratica a virtude da religião tem mais chances de escolher ações corretas para a realização do bem básico da religião, o qual foi encontrado pelo insight.
Enfim, Finnis expõe rapidamente algumas considerações sobre as virtudes cardeais, das quais a principal e mais necessária é a virtude da prudência, que ele parece identificar com o próprio bem básico da razoabilidade.
2.5. Capítulo V: comunidade política
Neste curto capítulo, o professor Finnis expõe que a sua concepção de bem-comum é um estado em que uma pessoa A quer o bem-estar de B por causa de B (e vice-versa), e não por causa de algo que B pode oferecer. Essa parece a descrição da virtude da amizade em seu sentido mais elevado nos termos aristotélico-tomistas.
Assim, a ideia de uma comunidade de pessoas está pautada no fato de que uns ajudam os outros a alcançar os bens básicos necessários para a sua realização (ou para a realização da própria instituição: uma universidade, por exemplo, tem como bem-comum o conhecimento).
2.6. Capítulo VI: o Estado: uma “comunidade completa” com governo “misto” e “limitado”
Tendo esclarecido o modo como o ser humano age e descobre os valores que vale a pena perseguir, e o que eles implicam em sua realização, Finnis aponta algo evidente a todos: o Estado é uma comunidade formada por membros da espécie humana; por isso, sua estrutura está (de)limitada em, pelo menos, quatro sentidos.
A primeira limitação está no campo moral: sendo formados por (e para) seres humanos, o governo e as leis do Estado são sujeitos aos padrões morais delimitados pela teoria ética anteriormente formulada na razão prática.
A segunda limitação é inferida da primeira: se as leis e o governo estão sujeitos aos padrões morais da Lei Natural, todo o governo estatal está sujeito às suas próprias leis. Segundo Finnis, se eles desafiarem as restrições morais de suas leis, se revelam tiranos e podem ser combatidos e depostos pela ação conjunta dos cidadãos.
A terceira limitação é que os governantes e as leis têm a autoridade e o dever de perseguir o bem-comum (isto é, realizá-lo), incluindo o bem da virtude.
E a quarta limitação é que a autoridade moral do governo e das leis podem estar sujeitas e limitadas pelas normas de uma outra comunidade completa, da qual seus membros hipoteticamente fazem parte e assentem: a Igreja. Evidente que, exceto para o campo moral, o governo e as leis têm total autonomia dentro de seus domínios próprios e prescindem de qualquer diretriz externa na execução de suas atividades próprias.
No decorrer desse capítulo, Finnis trata ainda da relação entre governantes e governados, e entre Estado e Igreja.
2.7. Capítulo VII: lei
Enfim, no último capítulo desta primeira parte da obra, John Finnis se esforça por demonstra como a lei é um apelo à razão, uma positivação de regras e finalidades que a própria razão postula e indica ser benéficas para a realização humana integral.
A finalidade da lei é o bem-comum da comunidade e, por isso, ela é necessária mesmo num mundo ideal de santos irrepreensíveis: diversas vezes se apresentam duas ou mais possibilidades moralmente válidas de bens a serem realizados, e o papel do governante é decidir qual será perseguida naquele momento. Para Finnis, ainda que os governados preferissem um caminho diferente, estão obrigados a seguir o governante, desde que esse tenha realizado um ato legítimo de governo não contrário aos princípios da Lei Natural.
Porém, Finnis (e Aquino) sabem que o mundo não é feito apenas de santos e, por isso, refletem a possibilidade de governantes corruptos (cuja solução mais prática é o que chamam Império do Direito) e leis injustas (que não são simplesmente leis e, a depender dos fatores envolvidos na “equação”, podem ser desobedecidas sem implicar num ato imoral).
3. Considerações sobre a obra
Apesar de breve (apenas 128 páginas), a obra Direito Natural em Tomás de Aquino não é de rápida leitura, especialmente para os que não estão acostumados com leituras filosóficas exigentes.
John Finnis tem a qualidade de encadear logicamente suas ideias, como um engenheiro que começa a construção de um edifício desde as bases, mas peca por ser extremamente detalhista, o que torna a leitura pesada em parágrafos que poderiam ser resumidos em poucas palavras — naturalmente, aqui entra uma questão de estilo e gosto pessoal que causa diferentes impressões em diferentes leitores.
Embora o detalhe técnico quanto à escrita, esta é uma obra excelente e absolutamente recomendável para os interessados na teoria neoclássica da Lei Natural. Traz um resumo breve, mas substancial, sobre a complexa teoria de Tomás de Aquino e John Finnis, e introduz os estudantes numa tradição do Direito Natural que não rejeita totalmente o Direito Positivo, mas lhe confere um novo sentido e vigor, aperfeiçoando os detalhes que necessitam de reparo.
O professor John Mitchell Finnis nasceu na Austrália, mas doutorou-se junto à Universidade de Oxford, Inglaterra, sob a orientação de H. L. A. Hart. Tornou-se docente na mesma universidade e, após 13 anos de estudos, publicou em 1980 sua primeira e principal obra, Lei Natural e Direitos Naturais, com a qual reinsere o tema do Direito Natural clássico no debate contemporâneo.
Bibliografia
FINNIS, John M. Direito natural em Tomás de Aquino: sua reinserção no contexto do juspositivismo analítico. Tradução Leandro Cordioli. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2007.